Recurso humanos em saúde – Política, desenvolvimento e mercado de trabalho

Foto: Radilson Carlos Gomes

 

A estruturação da pauta e a organização dos artigos que integram esta coletânea sobre desenvolvimento de profissionais para o setor saúde e características do mercado de trabalho, tanto para absorvê-los quanto para formular novas demandas, traduzem um conjunto de preocupações resultantes de duas pesquisas de avaliação realizadas recentemente pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) da Unicamp.

A primeira delas foi desenvolvida no ano 2000 e consistiu de um “estudo de caso” realizado em um conjunto selecionado de municípios brasileiros com o objetivo de avaliar o impacto da descentralização dos serviços de saúde no aprimoramento gerencial da administração local, nos graus de autonomia alcançados pelos municípios e, finalmente, na capacidade dos municípios de introduzir inovações e realizar investimentos no setor saúde. Os principais resultados indicaram que a experiência de descentralização foi vivenciada pelos municípios como um processo gradual de aprendizagem, no qual cada tipo de enquadramento municipal (incipiente, parcial, semipleno, pleno da atenção básica e pleno do sistema municipal) significou a entrada em uma etapa superior com responsabilidade e autonomia crescentes. Todos os municípios estudados introduziram algum tipo de inovação, utilizando uma combinação de recursos que incluiu PAB fixo (per capita), PAB variável (especialmente Programa de Agentes Comunitários de Saúde/ACS) e recurso s próprios. As inovações introduzidas com os recursos do Piso da Atenção Básica (PAB) variável contemplaram expansão de programas, incremento de atividades, reestruturação da atenção primária e reorganização da demanda. Já aquelas introduzidas com o apoio do PAB fixo foram iniciativas municipais de redefinição de prioridades e reorganização programática, ancoradas na maior autonomia alcançada pela administração local. O terceiro resultado é surpreendente e contribuiu para um segundo estudo que aprofundou as questões relacionadas com o desenvolvimento de recursos humanos para a saúde. Ao assinalar os principais problemas enfrentados no processo de municipalização dos serviços de saúde, os entrevistados equipararam a escassez de recursos financeiros à falta de recursos humanos qualificados para implementar os programas: a renegociação do teto financeiro foi citada em 68% das entrevistas ao lado da insuficiência de pessoal capacitado, citada em 65% dos casos.

A segunda investigação relacionada com o tema ocorreu de janeiro de 2001 até meados de 2002 e teve por objetivo avaliar as alternativas institucionais de capacitação de pessoal para a saúde, analisando os Pólos de Capacitação, Formação e Educação Permanente de Pessoal para o PSF (Programa de Saúde da Família). O estudo focalizou as atividades educacionais e as características institucionais dos Pólos, bem como sua relação com o trabalho das equipes do PSF na instância local, objetivando promover o “encontro” entre a capacitação ofertada e as necessidades reais das equipes operacionais. Os resultados mostraram que o aparelho institucional encarregado de capacitar recursos humanos para a saúde é complexo, diversificado e com baixa capacidade para formar profissionais para o atendimento básico resolutivo, principalmente no nível da graduação. Outrossim, mesmo as alternativas concebidas para complementar o sistema educacional oficial não contam com a capilaridade necessária para alcançar as equipes no seu local de trabalho, havendo necessidade inquestionável de descentralização. O estabelecimento de parcerias com as instituições de ensino superior e o aproveitamento das DIRES (Diretoria Regional de Saúde) para a disseminação dos cursos são instrumentos capazes de potencializar os mecanismos de descentralização. Finalmente, há necessidade de conceber formatos didático-pedagógicos que viabilizem a capacitação de equipes integradas, em que pese a heterogeneidade de seus componentes.

Nesse contexto, além da publicação dos resultados dos estudos, objetivando informar os deliberantes e disseminar os diagnósticos na busca de medidas mais consensuais e eficazes, o Núcleo de Estudos de Políticas Públicas decidiu organizar este compêndio reunindo a opinião de profissionais de excelência, que trazem para o debate os principais problemas da área de desenvolvimento e aproveitamento profissional de pessoal para a saúde.

O compêndio está estruturado em seis capítulos.

O primeiro capítulo, Formação e Educação Continuada em Saúde – Especialização, Atenção Básica e Reforma Curricular, visa à caracterização do contexto no qual ocorrem o desenvolvimento de pessoal e seu exercício profissional, tratando da conhecida disjuntiva entre formação generalista e especialização presente no processo de formação acadêmica. O artigo de Bevilacqua e Prado Sampaio aborda a contradição entre a oferta de especialistas e a demanda popular por generalistas em um quadro profissionalizante no qual a residência médica tem um papel crucial. O artigo de Machado de Souza e Rolim Sampaio apresenta a principal estratégia de mudança do modelo de atenção básica do país, o Programa de Saúde da Família, e seu papel como ponto de inflexão no processo de municipalização da saúde e carro-chefe da demanda por recursos humanos capacitados para a atenção primária. O artigo de Campos e Teixeira de Aguiar trata do descompasso entre a remodelação do sistema de saúde no Brasil (reforma sanitária, implementação do SUS, ênfase na atenção básica) e o ensino médico atual, aplicado a uma medicina segmentada e espelhada em problemas típicos de países desenvolvidos.

O segundo capítulo, Descentralização e Recursos Institucionais para Capacitação de Pessoal, aborda a concepção de formatos institucionais descentralizados, e em redes, com adequada capilaridade para atingir o público-alvo dos programas de capacitação. O artigo de Rodrigues Gil, Curia Cerveira e Torres trata da alternativa de capacitação concretizada pelos Pólos enquanto iniciativa pública condizente com as necessidades da população brasileira. O artigo de Faria e Viana analisa o complexo institucional estruturado para viabilizar a descentralização da capacitação, associando iniciativas do serviço e do ensino na constituição do modelo expresso nos Pólos; examina, por um lado, a qualificação profissional para a atenção básica ofertada em dez estados brasileiros e, por outro, a qualificação demandada por equipes de saúde da família atuantes em 56 municípios de quatro regiões do país. O artigo de Macruz Feuerwerker e Almeida apresenta as inovações introduzidas na área de formação de pessoal e na democratização da saúde pelo projeto UNI que, associado à rede IDA, gerou a experiência da rede UNIDA na articulação ensino-serviço de saúde no país.

O terceiro capítulo, As Transformações do Trabalho no Contexto da Globalização e do Desenvolvimento Tecnológico, aborda a organização e regulação das profissões de saúde na atualidade. O artigo de Brito, Padilla e Rígoli apresenta reflexão sobre as experiências de desenvolvimento de recursos humanos e reformas setoriais em saúde pública, principalmente em países americanos, com a cooperação técnica internacional da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Organização Mundial de Saúde (OMS) nos anos 1990. O artigo de Girardi e Carvalho analisa dados sobre a evolução e estrutura dos mercados de trabalho em saúde no Brasil atual, sob três pontos de vista: exame econômico-setorial, jurídico-institucional e ocupacional. O artigo de Passos Nogueira traz uma reflexão sobre a “composição social do cuidado em saúde”, reforçando as dimensões éticas do tratamento e a diversidade de contextos sociais das relações humanas envolvidas, em contrapartida à “organização social do trabalho em saúde”, com sua lógica predominantemente técnica, sua racionalidade instrumental e práticas institucionais coordenadas. O artigo de Barros Silva e Rosário Costa estabelece um paralelo entre o emprego setorial em saúde no Brasil atual, em vista da política pública de descentralização e do quadro de privatização de serviços, e a dinâmica geral do mercado de trabalho na economia brasileira, com suas características de terceirização, desregulamentação e informalidade.

O quarto capítulo, Estratégias de Qualificação, Interiorização e Fixação de Profissionais, apresenta alguns dos programas que objetivam aproximar os profissionais dos beneficiários do serviço de saúde, seja através da capacitação dos recursos humanos locais, seja através da interiorização do pessoal capacitado. O artigo de D’Angelo Seixas e Stella focaliza o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS) como alternativa brasileira às iniciativas internacionais usuais para levar a assistência à saúde a áreas remotas e carentes do país, desde o ano 2000. O artigo de Azevedo da Silva faz a releitura de dois programas emblemáticos para a qualificação de trabalhadores de nível elementar e médio na área de saúde e para a qualidade destes serviços no Brasil: o Programa de Preparação Estratégica para Pessoal de Saúde e o Projeto Larga Escala.

O quinto capítulo, Prioridades para o Desenvolvimento de Recursos Humanos em Saúde, assinala a direção das agendas internacionais e da agenda nacional para a abordagem da formação profissional e distribuição do pessoal de saúde. O artigo de Dal Poz, Stilwell, Mercer e Adams mostra o papel das agências internacionais nos programas de saúde pública de diversos países, num mundo cada vez mais globalizado e interdependente, embora profundamente desigual. O artigo de D’Angelo Seixas e Duarte apresenta os temas estratégicos que deverão compor a agenda de recursos humanos nos anos vindouros, destacando a formação acadêmica, a habilitação de pessoal de nível médio, a educação continuada e o treinamento em serviço, assim como as questões de financiamento, contratação e distribuição de pessoal.

O sexto e último capítulo, Planejamento e Política de Recursos Humanos: Revisitando os Temas Abordados, transcreve a entrevista que realizamos com o Dr. José Francisco Nogueira Paranaguá de Santana, para quem “as políticas vão-se constituindo enquanto projetos que vão-se compondo. Nesse sentido, é razoável dizer que sempre houve uma política de formação de pessoal de saúde no país”.

Ao disseminar – esperamos que amplamente – as principais questões que ocupam as agendas dos formuladores e gestores de programas de desenvolvimento e aproveitamento de recursos humanos na saúde, desejamos apoiar o debate democrático e responsável em busca de solução para os problemas que enfrentamos na árdua tarefa de levar saúde e qualidade de vida àqueles que se beneficiam do resultado do nosso trabalho.

Geraldo Di Giovanni
Regina Faria

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